Memórias de uma greve na UFPR
Agosto de 2001: tem início uma das maiores greves da história das universidades federais do país. Sob o comando do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES), professores de dezenas de instituições federais de ensino paralisam suas atividades, num movimento que duraria 108 dias. No Paraná, a greve atinge em cheio a UFPR, na qual eu cursava o primeiro ano de Direito. Rapidamente, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) convoca os alunos da universidade a decidirem se declaram apoio ao movimento, “aderindo” à greve dos professores.
Jovem, apaixonado por política e neófito em reuniões como essas, lá vou eu, empolgado, participar da assembleia convocada pelo DCE. Restaurante cheio, mesas e cadeiras empilhadas no canto para dar espaço aos cerca de duzentos estudantes presentes, um membro do DCE pega o microfone e é o primeiro a discursar. Ele faz uma veemente defesa da greve e prega que os estudantes não só a apoiem, como a engrossem nas ruas. Aplausos no salão. O segundo membro do diretório a discursar segue a mesma linha. O governo quer acabar com o financiamento público da educação a mando do FMI, diz ele. O estudante, portanto, tem que participar da greve também. Mais aplausos. E assim a assembleia segue, até que o microfone é aberto aos presentes.
Quando o primeiro inscrito começa a falar, o tom é diferente. O orador diz que vivenciou outras greves na universidade, que os maiores prejudicados foram os acadêmicos, que as aulas não foram repostas, que a greve é um direito constitucional assegurado aos trabalhadores, mas que os estudantes não devem servir de massa de manobra para movimentos que não são seus. Ao final, palmas. O orador também tem simpatizantes no salão.
Antes que o próximo inscrito pegue o microfone, percebe-se uma movimentação entre os diretores do DCE. Uma troca de olhares dá origem a uma silenciosa, mas pronta, reação. Membros do DCE e seus correligionários passam todos a se inscrever para falar, um após o outro, alguns por mais de uma vez. O número de inscrições sobe ao sinal de qualquer novo discurso contrário ao apoio à greve. O tempo passa. Muitos dos presentes começam a deixar o salão porque precisam trabalhar ou voltar para casa. O tempo passa. Os discursos já completam duas horas, e o número dos presentes já é um terço do que foi. As pessoas vão lidar com seus compromissos.
Diretores do DCE e seus simpatizantes insistem na tática. Até que um deles decide que o objetivo traçado pelo grupo desde que a assembleia fora convocada já pode ser alcançado com segurança. E assim, colocado em votação, o apoio à greve dos professores é aprovado pelos poucos estudantes presentes, com o voto contrário de um ou outro dissidente. Prepara-se a nota que será docilmente reproduzida pela imprensa no dia seguinte “estudantes da UFPR declaram apoio aos grevistas”. Dessa forma, como num piscar de olhos, a vontade de cerca de 50 pessoas passa a representar o desejo dos mais de 30 mil estudantes da instituição.
O assembleísmo no Brasil
O conjunto de ações adotadas por uma minoria organizada para fazer valer o seu ponto de vista é conhecido como assembleísmo. No Brasil, nos últimos anos, o assembleísmo tem representado um dos mais importantes instrumentos de atuação dos partidos de esquerda na sociedade civil. No caso da greve da UFPR de 2001, por exemplo, o DCE da instituição era comandado por membros do PSTU (o mesmo partido que comandava, e ainda comanda, o ANDES), PC do B e PT.
Mais do que táticas utilizadas em reuniões, o que marca o assembleísmo são as medidas empregadas pela minoria organizada para ocupar determinados espaços coletivos. Agindo organizadamente, com o emprego de táticas bem definidas, e valendo-se da leniência própria da esfera pública (em que o comando é difuso, e a responsabilização pelos atos praticados é pequena), tais grupos conseguem atingir posições de liderança em entidades de representação da sociedade civil.
No caso das universidades públicas, por exemplo, é conhecida a figura do “estudante profissional”, que designa o militante que ingressa na universidade para fazer política, sem preocupação em comparecer às aulas e se formar no prazo previsto. O objetivo é permanecer na instituição o maior tempo possível, se necessário por meio de sucessivas reprovações ou pela matrícula em outros cursos, com o objetivo principal de, em conjunto com outros militantes, ascender à liderança dos órgãos máximos de representação estudantil. Nesses órgãos, os “estudantes profissionais” passam a gozar não apenas de exposição pública, como também de direito a voz e voto nos principais conselhos administrativos da faculdade.
A prática é decisivamente adotada no país hoje por partidos de esquerda, como os citados acima (ao quais hoje se soma o PSOL), que proveem organização e auxílio financeiro aos seus militantes estudantes. Dessa maneira, tais partidos alcançam, pela via indireta, uma projeção que estão longe de atingir nas esferas de representação oficiais do país (o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores).
Diferentemente do “estudante profissional”, o estudante comum ingressa em uma universidade para estudar e formar-se. Ele costuma ter o dia preenchido por diversos afazeres, como atender às aulas e, frequentemente, trabalhar. Ainda que o estudante comum se interesse por participar das eleições para o órgão máximo de representação estudantil da universidade (e é importante que o faça), sua capacidade de organização e mobilização é infinitamente menor do que a de grupos apoiados por partidos políticos. Por consequência, sua capacidade de disputar essas eleições e vencê-las é muito inferior (a exceção fica por conta de órgãos de representação menores, como os centros acadêmicos de cada curso, em que a proximidade entre representado e candidatos é grande, e a capacidade de mobilização para eleições, bastante factível, mesmo para grupos não originariamente organizados.).
Veja-se novamente o caso da greve de 2001. O PSTU era, como ainda é, um partido praticamente irrelevante na esfera política nacional, sendo rejeitado pela população brasileira eleição após eleição por conta do radicalismo de seus métodos e de seu objetivo: a instalação de um regime socialista de partido único (a propósito, não deixa de ser curioso perceber que a própria existência do PSTU no país hoje somente é possível porque a democracia brasileira garante ao partido o que ele busca negar às outras agremiações: a participação política). Na UFPR, contudo, em que o partido se aliava a outros grupos, o PSTU mandava no DCE, exercendo por meio dele a sua vontade e travestindo-a da vontade de todos os estudantes da universidade.
Algo semelhante ao que ocorre nos diretórios centrais dos estudantes das universidades públicas do país acontece também em vários grandes sindicatos do país. Aparelhados por partidos políticos, esses sindicatos defendem suas demandas particulares sob o pretexto de defenderem interesses da categoria trabalhista correspondente.
O Decreto n.º 8.243/2014 e sua inconstitucionalidade
O assembleísmo vem à tona com destaque na atualidade por conta da recente edição, pela Presidente da República, do Decreto n.º 8.243, de 23 de maio 2014. Destinado a instituir no país o que batiza de “política nacional de participação social” e “sistema nacional de participação social”, o Decreto tem causado grande reação por conta de sua inequívoca pretensão totalitária.
Escrito com o inconfundível vocabulário revolucionário, caracterizado pela imprecisão estilística, um prolífico emprego de conceitos vagos e indeterminados e a tentativa de transmitir uma imagem popular, o Decreto é o mais ousado passo que o PT já deu em seu (agora inegável) projeto de perpetuar-se no comando do país. Inserido no meio de um emaranhado de disposições redundantes e dúbias, o art. 5.º do Decreto não deixa dúvidas do que o partido busca com a edição do ato: abrir terreno para a submissão de todo e qualquer órgão da Administração Pública Federal a mecanismos coletivos de representação a serem criados no futuro (nos exatos termos do Decreto: “Art. 5.º Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”).
Não há dúvida sobre a inconstitucionalidade do Decreto n.º 8.243/2014. Baixado pelo Poder Executivo, o Decreto é um ato administrativo e, como tal, não poderia inovar na ordem jurídica nacional e dispor sobre matéria que a legislação brasileira não lhe autoriza a fazer. Apenas uma lei, aprovada pelo Congresso Nacional, pode instituir direitos e deveres aos cidadãos do país e dispor sobre a criação e a hierarquia de órgãos e cargos públicos da Administração Pública. Trata-se da regra da legalidade, regra de ouro não apenas da República, como também de todo o Direito Público nacional, insculpida nos arts. 37 e 48 da Constituição da República.
O Decreto n.º 8.243/2014 exorbita, e muito, o restrito limite imposto à atividade do Presidente da República assegurada no art. 84, VI, “a”, da Constituição. Além disso, tendo em vista que o Decreto omite quem seriam os cidadãos habilitados a compor o que chama de “instâncias de participação social” e como eles seriam eleitos, o ato viola a regra constitucional da igualdade (art. 5.º, caput) e todos os demais dispositivos da Constituição que garantem a representação equânime dos cidadãos brasileiros perante o Poder Público.
Espera-se, portanto, que, em breve, o Decreto seja sustado pelo Congresso Nacional (como o autoriza o art. 49, V, da Constituição) ou declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (por força do art. 102, I, “a”, da Constituição). A propósito, diante da gravidade do Decreto, nada menos do que dez partidos políticos já se uniram no Congresso para buscar sustar o ato com urgência (PV, PPS, Solidariedade, PSDB, DEM, PR, PSD, PSB, Pros e PRB), assim como diversos juristas do país já advertiram para a sua ilegalidade.
A escalada totalitária
Descontada a inconstitucionalidade do Decreto n.º 8.243/2014, a leitura do ato permite verificar como o assembleísmo está arraigado na consciência petista como um importante instrumento de atuação. A propósito, não causa surpresa o fato de que o Decreto foi editado pela Presidente Dilma Rousseff e concebido pelo Ministro Gilberto Carvalho, dois personagens que por boa parte de sua vida adulta ocuparam cargos públicos em comissão nas administrações petistas ou posições na própria estrutura do partido, vivendo, portanto, às custas da política nacional, alheios às dificuldades que os trabalhadores brasileiros comuns enfrentam em sua vida cotidiana, sejam eles servidores públicos, empregados da iniciativa privada, profissionais liberais ou empresários.
Em sua deliberada vagueza, o Decreto n.º 8.243/2014 prepara o terreno para que grupos minoritários organizados ocupem os espaços de representação que institui. O Decreto não indica quais espaços serão esses e como eles serão ocupados – características que, por si só, importam em sua invalidade, como visto acima. Considerando o histórico petista, contudo, pode-se concluir que o PT passará a ter como um dos seus mais importantes objetivos preencher tais instâncias com militantes do partido. Alcançada a meta, o partido terá afastado, pela via indireta, a autoridade do Congresso Nacional, pois, nos termos do Decreto, assuntos amplíssimos como a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação dos programas e políticas de todo e qualquer órgão da Administração Pública Federal estarão submetidos às instâncias dominadas pelo PT.
A própria autonomia dos servidores públicos aprovados em concursos públicos para desempenhar seu trabalho estará comprometida. Nem mesmos questões técnicas, como as referentes à energia, agricultura, fiscalização e pesquisa, por exemplo, estarão infensas à aprovação ou revisão do colegiado. A democracia no país sofrerá um duro golpe. Não demorará, e o Poder Judiciário receberá também o seu colegiado de supervisão.
Aos leitores que ainda não se convenceram da nocividade do Decreto n.º 8.243/2014 e acreditam que o ato busca tão somente aproximar o poder ao povo (garantindo-lhe, afinal, nada mais do que já lhe pertence), apesar de todas as advertências já levantadas no país nos últimos dias, pede-se que analisem a história dos regimes totalitários do mundo. Todos eles foram frutos de medidas que, a exemplo das previstas no Decreto n.º 8.243/2014, esvaziaram paulatinamente a importância das esferas de representação oficiais do país, a pretexto de pulverizar a representação popular na sociedade civil. Nesses regimes, a pluralidade de opiniões e concepções políticas da democracia representativa deu lugar ao pensamento único, comandado por um só partido, que arvora-se no direito de falar em nome do povo.
Pede-se a esses leitores, por fim, que percebam que o Decreto n.º 8.243/2014 não representa um ato isolado no cenário global, uma medida que teria sido adotada por acidente ou imprudência pela Presidente da República, mas, sim, que se insere claramente em uma série de atos semelhantes instituídos por governos em clara escalada totalitária, em especial da América Latina, que gozam da simpatia e da amizade do atual governo brasileiro.
Parcela importante dos membros e simpatizantes do PT é formada por gente honesta e idealista, que prefere o partido aos demais por se identificarem com as políticas sociais que formam o núcleo do discurso da agremiação. Embora muito bem intencionados, esses cidadãos geralmente não percebem como a liderança petista acaba utilizando sua energia para a obtenção de resultados que, embora travestidos de democráticos, refletem unicamente a vontade e o poder do grupo que comanda o partido.