Ou o Brasil acaba com o auxílio-moradia, ou o auxílio-moradia acaba com o Brasil

No próximo dia 15 de março, o Brasil sairá às ruas para protestar contra o governo Dilma Rousseff. Mas a exemplo do que ocorreu nos protestos de junho de 2013, a manifestação do próximo domingo deve reunir outros alvos.

No Paraná, por exemplo, é praticamente certa a presença do governo Beto Richa nas faixas e cartazes dos manifestantes.

Dilma e Beto, embora líderes de partidos arquirrivais, conduzem seus governos de forma bastante semelhante. Ambos se reelegeram a partir de campanhas milionárias, que retrataram um Estado e um país de mentira. Passadas as eleições, a verdade apareceu em forma de crise econômica, aumento de impostos e corte de gastos. Incompetência, amadorismo e fisiologismo em dose dupla (Justiça seja feita: a corrupção no governo petista parece não ter paralelo em nenhum outro governo – do mundo).

A manifestação do próximo dia 15 não será completa, contudo, se deixar de fora um outro tema urgente: o Poder Judiciário nacional e o seu autoconcedido auxílio-moradia.

Eu já me manifestei três vezes sobre o assunto no ano passado, mas a continuidade do pagamento desse privilégio absurdo, agora estendido a todos os juízes e promotores do país, não me deixa de causar espanto e indignação.

O paradoxo do recebimento desse benefício imoral, ilegal e inconstitucional por quem tem o dever de aplicar o Direito no país é tão evidente, e os efeitos tão nefastos para o Brasil, que não é exagero dizer que o próprio reconhecimento de nosso povo como uma República está ameaçado. Ou o Brasil acaba com o auxílio-moradia, ou o auxílio-moradia acaba com o Brasil.

Art. 65 Lei Complementar 35/79 (LOMAN): sem autoaplicabilidade, foi esquecido por anos pelos Tribunais brasileiros

Art. 65 da Lei Complementar 35/79 (LOMAN): sem autoaplicabilidade e de constitucionalidade duvidosa, o dispositivo foi esquecido por anos pelos Tribunais brasileiros

A República brasileira e as regras constitucionais para fixação de remuneração de agentes públicos

Vamos direto ao ponto: viver em uma República significa viver sob o primado das Leis, e não de determinadas pessoas. Em uma República, ao invés de reis, príncipes, princesas ou qualquer outra autoridade, quem manda são as Leis – e, dentre elas, a mais importante, a Constituição.

O art. 39, § 4º, de nossa Constituição determina que os membros dos Poderes da República brasileira devem ser remunerados por subsídio fixado em parcela única, sem a adição de qualquer penduricalho. Isso significa dizer que os contracheques de prefeitos, governadores, presidente, vice-presidente, vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores e juízes devem conter apenas uma linha correspondente à remuneração percebida. É vedado o pagamento de qualquer adicional, prêmio ou abono.

A regra do jogo é clara e tem duas razões principais. A primeira é que um membro de Poder não é um assalariado comum. Membro de Poder não bate ponto e não tem jornada de trabalho. A segunda razão é de ordem moralizante: os Poderes controlam a aplicação de seus próprios orçamentos e poderiam abusar dessa faculdade no momento de remunerar seus membros, acrescentando ao salário básico verbas extras diversas. Assim, para permitir a quem paga a conta – no caso, a população – a verificação rápida e clara do valor desembolsado, estabelece-se um critério objetivo: uma linha no contracheque, e nada mais.

Essa função moralizadora é reforçada por uma segunda regra constitucional, o art. 37, X, da Constituição, que determina que os subsídios dos membros de Poder sejam fixados e alterados apenas por meio de Lei. Por Lei, veja-se, e não por Resolução, Portaria, ou qualquer ato administrativo do próprio Poder beneficiado. A regra comporta exceções na fixação das remunerações do presidente, vice-presidente, ministros de Estado, senadores e deputados federais (que são fixadas por decreto legislativo do Congresso Nacional, nos termos do art. 49, VII e VIII, da Constituição Federal), e na remuneração dos vereadores (fixada por ato da própria Câmara para a legislatura seguinte, nos termos do art. 29, VI).

Uma terceira regra constitucional sobre a remuneração dos servidores públicos do país é o art. 37, XI, da Constituição, que estabelece como teto máximo dos salários dos agentes públicos o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, um Ministro do STF recebe R$ 33.763,00 mensais, por força da Lei nº 13.091/2015.

Para ver seus subsídios aumentados, portanto, os juízes brasileiros precisariam encaminhar ao Poder Legislativo um projeto de Lei com a definição do novo valor de seus subsídios, os quais não poderiam ser acompanhados de penduricalhos, nem superar o limite do teto constitucional. Toda vez que se quisesse alterar o valor dos subsídios, o procedimento deveria se repetir.

Resolução 413/2009 do STF: a verdadeira fonte do auxílio-moradia no país atualmente

Resolução nº 413/2009 do STF: a verdadeira fonte do auxílio-moradia no país exige comprovação das despesas por parte do beneficiado

“Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a Lei”, ou de como “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau”

O conjunto de regras constitucionais sobre a remuneração dos servidores públicos é muito bem conhecido pelo Poder Judiciário no país. Cotidianamente, no desempenho de suas funções, juízes e Tribunais fazem valer com vigor os mandamentos constitucionais sobre as condições e os limites de aumento de remuneração de outros agentes públicos.

No mês de outubro de 2014, por exemplo, o órgão máximo do Poder Judiciário do país, o STF, aprovou uma súmula vinculante que deixa claro seu zelo pelo respeito à legalidade na fixação da remuneração dos servidores públicos. Trata-se da Súmula Vinculante nº 37, segundo a qual “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”

Súmula Vinculante nº 37 do STF: "Em casa de ferreiro, o espeto é de pau"

Súmula Vinculante nº 37 do STF: “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a Lei”

Quando o interesse em jogo é da própria classe, bem, aí as coisas são um pouco diferentes… Um mês antes da aprovação da súmula vinculante nº 37, o próprio STF, em decisões liminares proferidas pelo Ministro Luiz Fux, atendeu a pedidos formulados por associações de magistrados e estendeu a todos os juízes brasileiros o direito ao auxílio-moradia. A primeira decisão do Min. Luiz Fux nesse sentido, que serviu de base para as demais, foi proferida na medida cautelar na ação originária nº 1773 e pode ser lida aqui.

O auxílio-moradia é um benefício que foi previsto no art. 65 da Lei Complementar nº 35, publicada em 1979 (Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN). A LOMAN mencionou o benefício apenas uma vez e ainda tirou dele toda a aplicabilidade imediata, pois não estabeleceu seu valor e previu a necessidade de que sua concessão fosse regulamentada por Lei. Por conta disso, o auxílio-moradia ficou esquecido anos a fio pela quase totalidade da magistratura brasileira.

Para tanto, aliás, muito contribuía o fato de que a LOMAN é anterior à Constituição de 1988, e havia sérias dúvidas sobre a compatibilidade daquele privilégio previsto aos juízes do país com o novo texto constitucional.

A partir da metade da década de 1990, no entanto, o art. 65 da LOMAN foi de alguma forma redescoberto. Outrora frágil e desprezado, o auxílio renascia forte e robusto. Era preciso dar cumprimento à Lei, oras! Tribunais de Justiça país afora, então, correram para levar às correspondentes Assembleias Legislativas projetos de Lei para instituir o benefício em seus Estados (a decisão liminar do Min. Luiz Fux na ação nº 1773, em sua p. 22, faz um panorama das Leis aprovadas nos Estados brasileiros).

Nem todos os Tribunais brasileiros se lembraram do benefício previsto na longínqua norma de 1979, contudo. Por conta disso, no ano passado, algumas associações de magistrados não contemplados com o auxílio procuraram o STF para solicitar ao órgão que fizesse garantir o benefício na marra.

A medida foi um sucesso. O STF não apenas reconheceu o direito ao benefício a todos os juízes brasileiros, exceto aqueles que ocupam residência oficial, como considerou o art. 65 da LOMAN aplicável imediatamente, mandou pagar o auxílio-moradia desde logo e ainda definiu o parâmetro da ajuda de custo. O valor do auxílio deveria ser o mesmo pago a esse título aos Ministros do STF, disse o Tribunal, no valor de R$ 4.377,73. O critério foi endossado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que editou a Resolução nº 199/2014, em 7 de outubro de 2014. No mesmo dia, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sustentando a simetria das carreiras da magistratura e do Ministério Público, estendeu  o benefício a todos os promotores do país, por meio da Resolução nº 114/2014.

O resto da história é conhecido. Com a edição das Resoluções do CNJ e do CNMP, todos os Tribunais e Promotorias do país hoje pagam auxílio-moradia a seus membros. A empolgação com a liminar do STF é tamanha que, no Paraná, por exemplo, a associação dos magistrados estaduais já pediu ao Tribunal de Justiça do Estado que, com base na liminar proferida pelo Min. Luiz Fux, retroaja o pagamento do benefício aos últimos cinco anos.

O que não é conhecido, contudo, é que a decisão proferida pelo Min. Luiz Fux não apenas baseia-se em um ato administrativo editado pelo próprio Tribunal, como aplica o próprio ato de forma imprópria. Ou seja, cioso da legalidade na fixação da remuneração dos outros agentes públicos, o STF deixou o entendimento de lado quando foi preciso beneficiar a própria classe.

Decisão do Min. Luiz Fux na  Ação Originária 1773: o STF estende o auxílio-moradia a qualquer juiz, ainda que resida em casa própria e mesmo que não comprove despesas com moradia

Decisão do Min. Luiz Fux na Ação Originária 1773: o STF estende o auxílio-moradia a qualquer juiz, ainda que resida em casa própria e mesmo que não comprove despesas com moradia

De ato administrativo em ato administrativo, a consolidação de uma irregularidade patente

O STF prevê a concessão de auxílio-moradia no âmbito do Tribunal na Resolução nº 413/2009 da própria Corte. Conforme o ato administrativo editado pelo STF, o auxílio é um reembolso destinado a ressarcir as despesas comprovadamente realizadas por quem não tem casa própria no Distrito Federal ou não ocupa imóvel funcional. Para fazer jus ao benefício, o beneficiado tem que apresentar ao Tribunal, mensalmente, o recibo do aluguel do imóvel que locou ou a nota fiscal do hotel em que está hospedado. O valor fixado para o auxílio é máximo, isto é, caso as despesas comprovadas pelo juiz sejam de montante inferior, o reembolso deve-se limitar a elas.

O valor atualmente pago pelo STF pelo auxílio-moradia é de R$ 4.377,73, como visto acima. O montante foi estabelecido pelos Ministros do Tribunal durante a 5ª sessão administrativa da Corte do ano de 2011, realizada no dia 21 de setembro daquele ano, a partir de “estudo e critério proposto pelo Diretor-Geral da Secretaria”. Cópia da ata da sessão pode ser acessada aqui.

Ata da reunião do STF de 21/09/11: a Corte estabelece o valor do auxílio-moradia por conta própria

Ata da reunião do STF de 21/09/2011: a Corte estabeleceu o valor do auxílio-moradia por conta própria.

É esse valor fixado em uma sessão administrativa do STF que o CNJ mandou pagar a todos os juízes do país quando editou a Resolução nº 199/2014. É esse mesmo valor que os Tribunais brasileiros têm ratificado por meio de Resoluções próprias. No caso do Paraná, por exemplo, o assunto é hoje disciplinado pela Resolução nº 134/2015, do TJ/PR.

Ou seja, de ato administrativo em ato administrativo, o Brasil viu a extensão do auxílio-moradia a todos os juízes do país correr como um raio, em velocidade oposta à costumeira lentidão de nosso Judiciário.

Mas há um detalhe fundamental nessa história: embora a decisão liminar do Min. Luiz Fux tenha mandado pagar o auxílio-moradia aos juízes brasileiros com base no valor fixado pelo próprio STF, a decisão dispensou a observação da Resolução nº 413/2009 do próprio Tribunal na parte em que proíbe o pagamento do benefício a quem reside em imóvel próprio e na parte em que exige a comprovação dos efetivos gastos do beneficiado com aluguel ou hospedagem em hotel.

Com a ratificação da decisão liminar pelo CNJ, hoje todos os juízes brasileiros podem receber auxílio-moradia no valor de R$ 4.377,73, independentemente de residirem em imóvel próprio, e independentemente de suas despesas com aluguel ou hotel serem inferiores a esse valor, tudo com base em atos administrativos fixados pelo próprio Poder Judiciário.

A inconstitucionalidade e a ilegalidade desses atos é claríssima, evidente, e causa espanto e tristeza que os responsáveis por aplicar o Direito no país, os juízes, deixem de reconhecer os atos como tais apenas porque são beneficiados por eles.

Hoje, portanto, em claríssimo desrespeito à Constituição brasileira, os juízes do país (e também os membros do Ministério Público, por extensão) recebem um penduricalho salarial não fixado por Lei e que, em alguns casos, pode importar na superação do teto remuneratório do serviço público fixado na Constituição.

Pior do que isso: como o Poder Judiciário tem atribuído ao benefício a qualidade de verba indenizatória, os juízes do país atualmente recebem o auxílio-moradia livre de qualquer desconto, ou seja, sem recolher imposto de renda ou contribuição previdenciária.

O absurdo vai além: como o benefício está fixado por ato administrativo do próprio Poder Judiciário, nada impedirá que, no futuro, por ato próprio, o Judiciário aumente os salários de seus membros a seu bel-prazer.

Resolução nº 199/2014 do CNJ: de ato administrativo em ato administrativo, o auxílio-moradia é fundamentado no país

Resolução nº 199/2014 do CNJ: para receber o auxílio, basta requerer. Benefício tem clara natureza salarial

O cinismo das afirmações de que “ajuda de custo não é salário”, “o auxílio-moradia é custeado pelo orçamento do Poder Judiciário” e de que “um juiz brasileiro ganha mal”

Confrontados com alegações como as deduzidas acima, os defensores da concessão do auxílio-moradia a juízes (e promotores) do país costumam apresentar três defesas distintas.

A primeira delas é que o auxílio-moradia é uma ajuda de custo e, como tal, uma verba indenizatória sem natureza salarial, paga “para o trabalho”, e não “pelo trabalho”. O auxílio seria, portanto, uma verba de natureza semelhante às diárias de viagem, por exemplo. Com isso, o auxílio não deveria ser encarado como penduricalho salarial, nem ser considerado para o cálculo do teto constitucional.

Há ao menos duas réplicas a esse argumento, contudo. A primeira é que o pagamento do auxílio-moradia, ainda que tivesse natureza indenizatória, deveria estar previsto em Lei, e previsto de forma tal que seu valor fosse determinado ou determinável de imediato. É inconstitucional a concessão de qualquer vantagem pelo poder Público sem prévia previsão legal, por claríssima lesão ao princípio constitucional da legalidade que rege a Administração Pública (art. 37, caput, da CF).

Como visto acima, o próprio art. 65 da LOMAN enuncia que não é autoaplicável – tanto que ficou décadas desprezado pelo Poder Judiciário nacional. Além disso, há sérias dúvidas sobre a recepção do dispositivo pela Constituição de 1988. Por fim, o STF não poderia, por ato administrativo, como a Resolução nº 413/2009, fixar por conta própria o valor a pagar pelo benefício.

A concessão de auxílio-moradia aos juízes brasileiros dependeria da deliberação dos membros das Assembleias estaduais do país e do Congresso Nacional, os quais deveriam, em primeiro lugar, deliberar sobre a Justiça da medida e, em segundo lugar, estabelecer, ainda que mediatamente, o valor do benefício.

Resolução nº 134/2015 do TJ/PR: de ato administrativo em ato administrativo, o auxílio-moradia é justificado

Resolução nº 134/2015 do TJ/PR: de ato administrativo em ato administrativo, o auxílio-moradia é justificado no país

A segunda réplica é que, no Direito, como na vida, as coisas são o que são, e não o que se diz sobre elas. Um benefício que se diz ajuda de custo para despesas com moradia, mas que é pago a todos indistintamente, mesmo aos titulares de imóvel próprio e independentemente do efetivo montante de tais despesas, é tudo menos ajuda de custo. Trata-se de flagrante verba salarial.

A segunda defesa a favor do pagamento do auxílio-moradia sustenta que o benefício é custeado integralmente pelo orçamento do Poder Judiciário, e que, portanto, não haveria aumento de custos para a população.

O argumento beira o cinismo. Quem sustenta teses como essa deveria entender de uma vez por todas que o Poder Judiciário, assim como os demais Poderes, não produz um parafuso, e que todo o dinheiro público é dinheiro do contribuinte. Quem sustenta teses como essa deveria entender, enfim, que é um empregado da população, e que recebe seus rendimentos a partir dos esforços dela.

O fato de o Poder Judiciário manter orçamento suficiente para conceder privilégios a seus membros não o autoriza, evidentemente, a fazê-lo, simplesmente porque não trabalha com dinheiro próprio, mas com dinheiro dos outros, cuja aplicação deve seguir estritamente a legislação.

A última defesa a favor do pagamento do auxílio-moradia indica que os juízes brasileiros ganham mal.

Que um juiz brasileiro deva ter um bom salario, isso é indiscutível. A profissão é fundamental para a democracia e deve ser atrativa para pessoas competentes e responsáveis.

Mas afirmar que os juízes brasileiros ganham mal é um disparate. Os juízes brasileiros ganham muito bem. Para que não haja qualquer dúvida ou para que o argumento não perca força diante do discurso retórico repetitivo das associações classistas, repita-se: os juízes brasileiros ganham muito bem.

Os juízes brasileiros não apenas ganham mais do que um juiz federal americano (como já indicamos em texto anterior) – país de maior PIB do mundo, muitas vezes mais rico e justo do que o Brasil –, como são titulares de privilégios como (inexplicáveis) dois meses de férias, aposentadoria integral e licenças variadas. Além disso, ao contrário do cidadão comum brasileiro, que recebe um salário baixo, juízes não correm risco econômico algum, trabalhando bem ou mal ganham o mesmo salário no final do mês e não pagam despesas administrativas (água, luz, telefone e mão-de-obra).

E se ainda assim estiverem descontentes com suas remunerações, os juízes podem sempre decidir arregaçar as mangas e partir para a iniciativa privada. Ninguém é obrigado a manter-se servidor público. É possível que alguns juízes, dado o seu talento e inteligência, tornem-se milionários na advocacia, por exemplo. Mas o mais provável é que a grande maioria deles, uma vez destituída do temor reverencial de que gozaram e mal acostumada com a imparcialidade e a falta de ímpeto da profissão, tenha seus ganhos reduzidos em algumas vezes na iniciativa privada, onde não existe estabilidade, nem aposentadoria integral, e é preciso gerar riqueza diariamente.

O auxílio-moradia inclui o Poder Judiciário brasileiro no fenômeno dos "memes"

O auxílio-moradia inclui o Poder Judiciário brasileiro no fenômeno dos “memes”

“Quem tem telhado de vidro não joga pedra no vizinho”, ou de como os juízes brasileiros deveriam deixar de aplicar a legislação nacional a partir de agora

Caso nossos juízes decidam manter-se no serviço público e receber de bom grado o auxílio-moradia, recomenda-se que, para manter a coerência, passem a deixar de aplicar a legislação nacional a partir de agora em diversos casos.

Se o auxílio-moradia é constitucional e legal, então os juízes (e promotores) brasileiros deveriam adotar as seguintes condutas de agora em diante:

a) proferir liminares favoráveis e julgar procedente toda e qualquer demanda de servidores públicos voltada a aumentar sua remuneração (com fundamento em revisão geral, isonomia com outra carreira, equiparação com outro Poder, etc.), independentemente de prévia previsão legal. O STF, pela mesma razão, deve revogar imediatamente a Súmula Vinculante nº 37;

b) anular imediatamente toda e qualquer condenação de agente público, proferida em ação criminal ou civil (especialmente em ações populares e ações por improbidade administrativa), que tenha considerado ilegal a concessão de vantagens a servidores públicos por meio de atos administrativos;

c) anular imediatamente toda e qualquer condenação de agente público, proferida em ação criminal ou civil, que tenha considerado ilegal a concessão de vantagens injustificadas. Por exemplo, vereadores e prefeitos que tenham recebido diárias sem comprovação da efetiva despesa deverão ser anistiados, receber o que já tiverem devolvido ao erário e ganhar um pedido formal de desculpas;

d) considerar revogado o crime de sonegação fiscal de imposto de renda e contribuições previdenciárias, anulando todas as penas, inocentando os culpados e indenizando-os por perdas e danos;

e) deixar de condenar o devedor de verba trabalhista ao recolhimento de contribuições ao INSS, dispensando-se a existência de procuradoria especializada junto à autarquia.

Juízes e promotores, outrora poupados, passaram a ser objeto de

Juízes e promotores, comumente poupados, passaram a ser objeto de escárnio e indignação da população (Fonte: Gazeta do Povo, 06/03/2015)

O constrangimento para os próprios juízes e promotores. A batalha moral está sendo perdida

Como já mencionei nesse site, conheço pessoalmente vários juízes e promotores. A absoluta maioria deles é honesta, competente e trabalhadora. Todos passaram em um concurso muito difícil e ocupam seus atuais cargos com méritos inegáveis.

Mas outro efeito nefasto do recebimento do auxílio-moradia por esses altos servidores públicos é a derrota na batalha moral. Juízes e promotores, com toda a razão, estão perdendo essa disputa por goleada.

É impossível justificar para a população por que alguém deve receber para morar na cidade em que precisa trabalhar. É impossível justificar para a população por que o valor do auxílio-moradia deve ser maior do que o salário médio do brasileiro. É impossível justificar para a população por que o Poder Judiciário pode se conceder aumentos e vantagens, enquanto nega o mesmo resultado para os demais cidadãos.

Enquanto os juízes e promotores do país garantem e aumentam o valor de seus salários e privilégios, o resto do país tem sua renda derretida pelo aumento da inflação e dos tributos.

Na última semana, vimos os caminhoneiros pararem parte do país para protestar contra o alto preço dos combustíveis e dos pedágios e o baixo preço dos fretes. Estão praticamente pagando para trabalhar, disseram.

No Paraná, estamos no meio de uma grande greve dos professores da rede estadual de ensino. Boa parte deles recebe como salário menos do que os juízes recebem de auxílio-moradia, e ainda, é claro, sofrem em seus vencimentos descontos de imposto de renda e contribuição previdenciária. Se ainda vivêssemos em um país mais justo, em que o Poder Judiciário tutelasse os direitos dos cidadãos com a mesma eficácia com que trata de seus interesses…

Toda a situação gera uma forte reação da população, e as figuras do juiz e do promotor, que deveriam despertar respeito e admiração, passam a ser alvos de escárnio e indignação. Há risco, inclusive, de dano à legitimação das funções, com prejuízo à observação das decisões judiciais no país. O risco à democracia brasileira é claríssimo.

As notícias publicadas pela imprensa envolvendo a greve dos professores no Paraná, por exemplo, têm sido invariavelmente acompanhadas de comentários contundentes de leitores, que chamam a atenção para o desequilíbrio entre a remuneração de juízes e demais servidores do Estado.

Na internet, além disso, juízes e promotores, antes raramente protagonistas de protestos, passam a ser alvo de “memes” diversos.

É o modo que a população encontrou para, fazendo valer seus direitos constitucionais à liberdade de expressão e crítica, exigir o cumprimento dos princípios fundamentais da República, da igualdade e da legalidade.

Que no próximo dia 15 o assunto volte a pauta nas manifestações por todo o país. E que o Poder Judiciário e o Ministério Público, após um exame de consciência, reconquistem o respeito que merecem e precisam ter da população, revogando a concessão do auxílio-moradia a seus membros e devolvendo ao erário os valores que receberam indevidamente.

População protesta contra a imoralidade do benefício a juízes e promotores

População protesta contra a imoralidade da concessão do benefício a juízes e promotores